Paracatu: o barroco que chega e parte de Brasília 59f46

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Artigo do Professor Leônidas Oliveira, Arquiteto e Urbanista. Especialista em História da Arte.

Nas noites de junho, Paracatu veste máscaras e retoma as ruas com a caretagem, manifestação popular de origem afro-ibérica que ecoa os Caretos de Bragança, em Portugal, hoje Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade pela Unesco.

“O barroco não é um estilo, é uma visão de mundo.” Benedito Nunes  

Quando a vi pela primeira vez, meu coração tocou mais forte. Eu, que sempre pensei que o barroco era feito de montanha, de bruma e de talha suspensa entre igrejas coloniais, descobri em Paracatu um barroco de outro tipo: estradeiro, sertanejo, quente, negro e vivo.

Ali, à beira da BR-040 e à sombra de mais de 350 casarões tombados, entendi que o barroco não termina em Minas: ele segue, caminha e se transforma. E vai dar em Brasília. Ou, mais ainda: Brasília é o coroamento barroco da travessia mineira, a sua reinvenção em concreto e utopia.

Brasília nasce da arte que Minas já sonhava: na leveza das curvas da Pampulha, na modernidade silenciosa de Cataguases, nas mãos de um menino de Diamantina chamado Juscelino. Do Rio ao Planalto Central, o que se impõe não é o traço da razão apenas, mas a curva da sensibilidade. É a arte.

Paracatu, por isso, é fundamental. Ela é o Portal das Minas Históricas, situada fora do eixo da Cordilheira do Espinhaço, mas integrada ao mesmo espírito de permanência e invenção. Suas ruas de pedra, suas igrejas sem torres, seus largos com nomes de fé e povo carregam a densidade de um lugar que nunca deixou de ser presente.

Mas o barroco de Paracatu não está apenas na pedra, está na carne. Está no “pelado”, doce de mandioca e coco feito nos quintais das mulheres negras. Está no pão de queijo sertanejo, que se amassa com saber ancestral. Está nas festas de cozinha tradicional, que celebram quitandas, pamonhas e doces como quem celebra a memória viva de um território. Ali, o paladar é patrimônio. E a cozinha, forma de resistência.

Nas noites de junho, Paracatu veste máscaras e retoma as ruas com a caretagem, manifestação popular de origem afro-ibérica que ecoa os Caretos de Bragança, em Portugal, hoje Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade pela Unesco. São séculos de distância unidos num só gesto, numa só batida de bastão. Como nos lembra Paul Gilroy, “as culturas da diáspora são compostas por encontros, não por origens”. E Paracatu é esse encontro, profundo e vibrante.

É também cidade quilombola: são 13 comunidades, cinco delas já reconhecidas oficialmente, que sustentam uma cultura afro-mineira feita de roça, roda, política e poesia. Desses territórios emergem vereadoras, educadores e artistas que mostram ao Brasil que a cultura negra não apenas fundou Minas – ela continua a sustentá-la.

No Festival Literário Internacional de Paracatu, o Fliparacatu, desde 2023, nomes como Ailton Krenak, Conceição Evaristo e Itamar Vieira Junior dividem a cena com autores da terra. A literatura ecoa dos becos como outrora o sino das igrejas. Paracatu é palavra encarnada. E leitura do Brasil.

Mas é também lição de gestão pública. Paracatu soube aliar preservação e desenvolvimento urbano, mantendo sua identidade sem fechar-se ao mundo. A cidade respira memória, mas olha para o futuro. E o faz pela cultura, pela educação, pela presença ativa de seu povo.

Apenas duas horas a separam de Brasília, mas Brasília está contida nela, simbolicamente. Como afirmou Oscar Niemeyer, “o que importa não é a linha reta, mas a curva”. Essa curva foi ensinada pela arte barroca mineira. E Paracatu é essa curva em movimento.

No caminho que vai do altar de pedra ao traço do concreto, Paracatu é chão e elo. É o barroco que anda. É o Brasil que resiste com beleza e se refaz em cada rosto, cada festa, cada quintal.

Porque ali, como escreveu Guimarães Rosa, “o real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da travessia”. E Paracatu é isso: o meio fecundo de uma travessia que começa, termina e recomeça sempre em Minas.

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